Por entre o mar de crianças que entra na escola, ele caminha devagar. Tranquilamente vai arrastando sua mochila suja e rota pelo chão. Ele não atrai mais a atenção de seus colegas. Há muito tempo eles se acostumaram com seu jeito diferente. Alguns pais entretanto, lançam-lhe olhares tortos. “Que menino esquisito!” pensam uns, “Deve ser desleixado como os pais!” pensam outros.
Alheio a tudo isso, Gabriel segue seu caminho. Dirige-se à sala de matemática, seu primeiro horário naquela manha. O professor Ernesto já estava lá, escrevendo a matéria no quadro como sempre. A aula daquele dia seria puramente explicativa e se arrastaria como se tivesse paralisado o tempo.
“O que tornam esses fatos diferentes?” hão de me perguntar vocês. A princípio, histórias como essa acontecem todos os dias em milhares de colégios no Brasil. Com isso eu sou obrigado a concordar. A singularidade porém, está em Gabriel. Ele não é uma criança como as outras. Na verdade, garotos como ele não existem muito nos dias de hoje. Gabriel é um sonhador e com sua imaginação criou um mundo particular. Lá ele se refugia em momentos de tédio ou tristeza. Como conseqüência, em nosso mundo ele é considerado um distraído. Não presta muita atenção ao que faz e as vezes, passa por pessoas conhecidas sem as cumprimentar. Antes de julgá-lo é importante saber que ele faz com capricho aquilo que lhe é interessante e que costuma imaginar coisas enquanto caminha, por isso não reconhece as pessoas que passam por ele.
Voltando àquela manhã, podemos ver Gabriel encaminhar-se a seu lugar. Enquanto a aula não começa, ele conversa um pouco com seus amigos. Na verdade ele mais observa do que fala. Os outros garotos comentam sobre um filme que ele ainda não assistiu. Alguns minutos depois, o professor Ernesto começa a passar a matéria. Nesse momento Gabriel endireita-se na carteira e finge prestar atenção. De longe, ele realmente parece entender os números e as frações, mas quem o conhece bem sabe que ele não faz a menor idéia do que se passa na sala. Ele voltou-se para seu mundo e neste momento está muito distante daquela aula maçante.
Em suas aventuras particulares Gabriel já fez de tudo. Já rodou nos dedos os anéis de Saturno e pegou emprestadas as asas de dona Imaginação. Construiu castelos de areia e virou rei. Viajou de navio com o Holandês voador e deitou no colo da sereia Marina. Já voou no lombo de um dragão e atravessou o deserto num dromedário. Assistiu ao casamento do seu Texugo e foi padrinho de Assíria, a borboleta. Conheceu as filhas da velha Sequóia e consolou o Salgueiro Chorão. Já ganhou batalhas ao lado de elfos e forjou sua própria espada. Descobriu onde as nuvens são feitas e visitou um berçário de estrelas.
Hoje ele está na praia; trava uma luta acirrada com Marlin, o experiente peixe-espada. Pula para não ser atingido, rodopia e ataca. Defende-se, leva um golpe na perna e cambaleia; recompõe-se. Ataca novamente. Direita, esquerda, cruza a espada de mão. Corre veloz e acerta. Ganha o combate. Enquanto ajuda o amigo a se levantar, comenta sobre a batalha e aceita um segundo round. Porém antes de começar, Gabriel lembra-se que está atrasado para o encontro com a raposa Maria Art Manha e vai logo desculpando-se. Antes de ir promete voltar para uma revanche.
Em um piscar de olhos, o cenário muda e agora ele está num campo aberto e florido. Avista a casa de Maria ao longe. Pelo caminho vai conversando com algumas flores. Dá bom dia a Rosinha e elogia seu colorido. Acena para os girassóis e comenta sobre o calor que está fazendo. Pergunta sobre a saúde de dona Margarida e afirma que ela não está pálida. No meio do caminho encontra um grupo de dentes-de-leão que falam de seus atos corajosos. Ali ficou um bom tempo. Lembrando-se novamente de Maria, ele se levanta e corre. Com o passo apertado chegará a sua casa dali a 3 minutos. Ele já pode vê-la abrir a porta e acenar. Em breve estarão juntos tomando chá de canela e comendo brownies, enquanto conversam sobre as novidades em Siracusa. Entretanto quando Gabriel estava a apenas 50m de distância da casa, um ruído alto e estridente ecoa pelo campo. Parece o grito fino de um flamingo sendo caçado. Ele quer continuar correndo, mas sabe que não será possível. Antes do esperado, Gabriel é tragado bruscamente por um turbilhão de vento e quando dá por si está de volta à sua carteira. A aula acabara e o sinal que anunciava o intervalo já tinha tocado.
Pensando em tudo que deixou de fazer, Gabriel vai ao recreio. Como toda criança ele começa a se distrair com as brincadeiras. Porém, em um cantinho de sua mente, não só a raposa Maria, mas todo seu universo onírico está a esperar por ele. Juntos, criança e imaginação fazem a contagem regressiva para sua próxima aventura.